Ascese

olio su tela cm 146 x 114 - Galleria d’arte Contini
ANTON ZORAN MUSIC, Anacoreta, 1994

As palavras da espiritualidade
de ENZO BIANCHI
É este o fim da ascese: pôr a vida do crente sobre o signo da beleza que, no cristianismo, é um outro nome para a Santidade

"Não se nasce cristão, mas tornamo-nos cristãos'' (Tertulliano). Este "tornarmo-nos" é o espaço em que se insere a ascese cristã. Ascese é hoje uma palavra suspeita, se não de todo absurda e incompreensível, para muitos homens e, o que é mais significativo, mesmo para um grande número de cristãos. Na verdade, "ascese", que deriva do grego askeîn, "exercitar'', "praticar'', indica, antes de tudo, a aplicação com método, o exercício repetido, o esforço para adquirir uma habilitação, uma competência específica: o atleta, o artista, o soldado devem "treinar-se", fazer e re-fazer movimentos e gestos para poder atingir prestações elevadas.  

A ascese é, antes de tudo, uma necessidade humana: o crescimento físico do homem, a sua humanização, exige uma correspondência interior. Exige dizer "não" para poder dizer "sim": "Quando eu era criança falava, pensava e raciocinava como uma criança mas, quando me tornei homem, deixei o que era próprio da criança" escreve São Paulo (1ª Carta aos Coríntios 13,11). A vida cristã que é renascer para uma vida nova, para uma vida "em Cristo", que é adaptação da própria vida à vida de Deus, requer assumir capacidades "não naturais" como a oração e o amor pelo inimigo: e isto não é possível sem um empenho constante, um exercício, um esforço incessante.

Infelizmente o mito da espontaneidade, que domina ainda a adolescência e que leva a contrapor exercício e autenticidade, revela-se um obstáculo determinante à maturidade humana das pessoas e à compreensão da essência da ascese para um crescimento espiritual. A ascese cristã é sempre um meio para alcançar a caridade, o amor pelo Senhor e pelo próximo. Não é possível sem quedas, falhanços, "pecados" que fazem com que a ascese cristã, correctamente empreendida seja sempre indissociável da graça: "Che uno possa vincere la sua natura non Š tra le cose possibili'' (Giovanni Climaco). A História cristã conheceu muitos desvios e excessos da ascese mas soube sempre condená-los pois reduziam a vida cristã a um conjunto de factos heróicos. E soube fazê-lo sempre com sentido de humor:"Se praticais a ascese de um jejum não vos orgulheis. Se por isso ficais cheios de soberba, é melhor que comeis carne; pois é melhor comer carne que inchar-se e vangloriar-se'' (Isidoro Presbitero).

A ascese não visa apenas o aperfeiçoamento do próprio "eu'', mas a educação do "eu'' à liberdade e à relação com o outro: o seu fim é o amor, a caridade. A ascese leva a sério o facto de não se poder servir dois patrões e que a alternativa à obediência a Deus é servir os ídolos. Também a vida interior deve ser educada, também o amor deve ser afinado e purificado, também as relações são sempre mais inteligentes e respeitosas: diz a ascese! Em particular "o suor e o cansaço"(Cabasilas) do esforço ascético são a abertura ao dom de Deus, o dispor-se a receber o dom da graça. Podemos resumir a dimensão cristã da ascese nesta afirmação: a salvação vem de Deus, em Jesús Cristo. A ascese não é mais do que aceitar-se a si próprio pela graça do Outro que tem o nome de Deus, é dizer sim para receber a própria identidade nesta relação com o Outro. Em particular, a ascese corporal, que muitas vezes foi conotada negativamente, sobretudo assumindo um modelo antropológico do tipo dual, afirma, como essencial para o conhecimento teológico, o envolvimento de todo o corpo. Sem esta dimensão, o cristianismo reduz-se a um exercício intelectual, a gnosi, ou apenas a uma dimensão moral.

Estando ao serviço da revelação cristã que confirma que a liberdade autêntica do homem se manifesta no seu devir capaz de dom de si, por amor de Deus e do próximo, abrindo-se ao dom de Deus, a ascese tende tende a libertar o homem da filautía, isto é, do amor de si, do egocentrismo e a transformar um individuo em pessoa capaz de comunhão e gratuidade, de dom e de amor. Mais uma vez a tradição cristã antiga mostra capacidade de autocrítica nas palavras de um Padre do deserto que constata que: "Muitos prostraram o seu corpo sem qualquer discernimento e foram-se sem encontrar nada. A nossa boca exala um mau hálito devido aos nossos jejuns, sabemos as Escrituras de memória, recitamos todos os Salmos, mas não temos aquilo que Deus procura: amor e humildade". Apenas uma ascese inteligente e conduzida com discernimento pode agradar a Deus. E resulta humanizante e não desumanizante. Resulta capaz de ajudar o homem no trabalho de fazer da sua própria vida uma obra de arte. Talvez não seja por acaso que askeîn seja utilizado na literatura grega antiga, também para indicar o trabalho artístico. É este, afinal, o objectivo da ascese: pôr a vida do crente sobre o signo da beleza que, no Cristianismo, é um outro nome para a Santidade.


ENZO BIANCHI
Le parole della spiritualità
Rizzoli, 1999 pp.19-22