Primeiro a escuta

Os ícones de Bose, A sarça ardente - estilo copta - têmpera de ovo sobre madeira
Os ícones de Bose, A sarça ardente - estilo copta - têmpera de ovo sobre madeira

Le parole della spiritualità
de ENZO BIANCHI
Ocorre dar a primazia à Palavra sobre as palavras, à Palavra de Deus sobre as múltiplas palavras humanas e ocorre escutar

"Fala, Senhor; o teu servo escuta! (1 Sam 3,10): estas palavras exprimem bem o facto da escuta, segundo a revelação hebraica-cristã, ser a atitude essencial da oração e contestam um nosso comportamento frequente de silenciar Deus para nos fazermos ouvir. A oração cristã é antes de mais escuta: não é tanto expressão do desejo humano de auto-transcendência, mas acolhimento de uma presença, relação com um Outro que nos precede e nos fundamenta. Para a Bíblia, Deus não é definido em termos abstractos de essência, mas em termos relacionais e dialógicos: Ele é antes de tudo Aquele que fala e este falar de Deus faz do crente um chamado a ouvir. É emblemático o encontro de Deus com Moisés na sarça ardente (cf. Ex 3,1-14): Moisés aproxima-se para ver o espectáculo estranho da sarça que arde sem se consumir e Deus vendo que ele se aproxima, chama-o e interrompe a sua aproximação. O método da visão é o da iniciativa humana que leva o homem a reduzir a distância entre ele e Deus, é o regime do protagonismo humano, da escalada do homem para Deus, enquanto o Deus que se revela quer que Moisés entre numa atitude de escuta e conserva a distância que não pode transgredida ser para que haja relação:"Não te aproximes daqui" (Ex 3,5). E o que era um estranho espectáculo torna-se para Moisés presença familiar: "Eu sou o Deus de teu pai'' (Ex 3,6). A Prometeo que sobe o Olimpo para roubar o fogo contrapõe-se Moisés que pára de fronte do fogo divino e escuta a Palavra.

A partir daquela primeira e criadora escuta, a vida e a oração de Moisés serão dois aspectos inseparáveis da responsabilidade de realizar a palavra escutada. Na escuta Deus revela-se-nos como presença que antecipa o nosso esforço de compreensão e de assimilação. Assim, o verdadeiro orante é aquele que escuta. Por isso "...o Senhor se compraz tanto nos holocaustos e sacrificios como na obediência à sua Palavra? (1 Sam 15,22), é melhor do que qualquer outra relação entre Deus e o Homem que se baseie no frágil fundamento da iniciativa humana. Se a oração é um diálogo que exprime a relação entre Deus e o homem, a escuta é o que coloca o homem na relação, na aliança, na recíproca pertença: "Ouvi a minha voz e Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo;"(Jr 7,23). Entendemos agora prque é que toda a Escritura é atravessada pela recomendação de escuta: é graças à escuta que nós entramos na vida de Deus, antes, consentimos a Deus que entre na nossa vida. O grande mandamento do Shema' Israel (Dt 6,4-13), confirmado por Jesús como central nas Escrituras (Mc 12,28-30), revela que da escuta ("Escuta, Israel'') nasce o conhecimento de Deus ("O Senhor é um'') e do conhecimento o amor ("Amarás o Senhor''). A escuta é, por isso, a matriz geradora, é a raíz da oração e da vida em relação com o Senhor, é a aurora da fé (fides ex auditu: Rom 10,17), e consequentemente também, do amor e da esperança.

A escuta é geradora: nós nascemos da escuta. É a escuta que nos introduz na relação de filiação com o Pai e não é por acaso que o Novo Testamento indica que é Jesús, o Filho, a Palavra feita carne, que deve ser escutado: "Escutai-o!" diz a voz que vem da nuvem, no monte da Transfiguração, apontando para Jesús (Mc 9,7). Escutando o Filho nós entramos na relação com Deus e podemos, na fé, dirigirmo-nos a Ele dizendo "Abbà'' (Rom 8,15; Gl 4,6), "Pai nosso'' (Mt 6,9). Escutando o Filho somos gerados como filhos. Com a escuta, a Palavra e o Espírito recreador de Deus penetram no crente tornando-se princípio de Transfiguração, de confirmação em Cristo.  Eis porque é essencial ao crente ter "um coração que escuta" (1 Re 3,9). E’ o coração que escuta através do ouvido! Isto é, o ouvido não é simplesmente, segundo a Bíblia, o órgão de audição, mas a sede do conhecimento, do intelecto em relação estreita com o coração, o centro unificante que abraça a esfera afectiva, racional e da vontade da pessoa. Escutar significa pois, ter "sabedoria e inteligência"(1 Re 3,12), discernimento ("Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às Igrejas." Ap 3,7).

Se a escuta é, portanto, central na vida da fé, então necessita de vigilância: é preciso estar atento ao que se escuta (Mc 4,24), a quem se escuta (Jr 23,16; Mt 24,4-6.23; 2 Tm 4,3-4), e como se escuta (Lc 8,18). É preciso dar a primazia à Palavra sobre as palavras, à Palavra de Deus sobre as múltiplas palavras humanas e é preciso escutar com um "coração bom e largo'' (Lc 8,15). Como escutar a Palavra? A explicação da Parábola do semeador (Mc 4,13-20; Lc 8,11-15) dá-nos a resposta. Devemos saber interiorizar ou então a Palavra é ineficaz e não produz frutos de fé (Mc 4,15; Lc 8,12); é preciso dar tempo à escuta, preserverar, senão a Palavra não produz frutos de consistentes, firmes e com a profundidade de uma fé pessoal (Mc 4,16-17; Lc 8,13); é preciso lutar contra as tentações, contra as outras "palavras" e "mensagens" sedutoras da mundanidade, senão a Palavra sufocará, não fecundará e nã dará frutos de maturidade ao crente (Mc 4,18-19; Lc 8,14). Se não existir esta escuta não existe também, oração!

ENZO BIANCHI, Le parole della spiritualità,
Rizzoli, 1999 pp.109-112